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ENTREVISTA

 

Lêdo Ivo a poesia e a literatura

 

Um poeta alagoano que goza de grande receptividade na América Hispânica é o alvo de nova conversação que brinda a edição domingueira do DC Ilustrado

 

Floriano Martins

Especial para o Diário de Cuiabá
reprodução autorizada no Portal de Poesia Iberoamericana

 

Em um estranho e imenso país chamado Brasil costuma ocorrer coisas por vezes muito curiosas e até preocupantes. Ao longo de minhas viagens a países hispano-americanos, convidado a participar de eventos literários, sempre me surpreendia a maneira afetuosa com que se falava em Lêdo Ivo (Maceió, 1924). A princípio me parecia um mal entendido, porque a suposição correta era de que seriam outros os famosos a alcançar projeção internacional. Mas logo vou descobrindo que a raiz de tudo está na pouca (ou nenhuma) atenção que escritores brasileiros dão à América Hispânica, um comportamento que reflete o alto grau de provincianismo de nossa cultura. De qualquer maneira, fui constatando a freqüência com que o nome de Lêdo Ivo me era indagado e me encabulava o fato de não conhecê-lo pessoalmente ou mesmo haver sequer trocado alguma correspondência com ele em minha vida. Pior: eu praticamente não conhecia sua poesia. Um dia finalmente coincidimos em Santo Domingo e fomos apresentados por nosso comum editor mexicano, José Angel Leyva. Sua figura carismática, amiga, divertida, rapidamente instalou entre nós boa amizade e mútuo respeito intelectual. De regresso ao Brasil, Lêdo me enviou seus livros e avançamos em nosso diálogo, sempre me inquietando o fato de que sendo autor tão reconhecido nos países vizinhos não gozasse do mesmo prestígio no Brasil. Em 2009 recebi convite da Casa das Américas, para ir a Cuba integrar o júri de seu famoso prêmio literário. Ao encontrar entre os livros inscritos a poesia de Lêdo Ivo, percebi a oportunidade que se abria, espécie de acaso objetivo que nos daria então a honra de premiá-lo através de um livro seu inscrito, Réquiem, livro este que inclusive vinha de duas belas edições no exterior, precisamente no México e na Itália. Posteriormente o poeta ganharia também o Prêmio de Poesia do Mundo Latino Victor Sandoval (México, 2008) e Prêmio Rosalía de Castro (Espanha, 2010). Publicado em países como Espanha, Dinamarca, Itália e Estados Unidos, assim como, em países hispano-americanos, Chile, Venezuela, Peru e México. A seguir, uma breve conversa nossa sobre alguns aspectos de sua vida e da literatura brasileira.

 

 

FM: Há uma observação que fazes a respeito de tua avó materna, no sentido de que ela “era uma católica praticante: um catolicismo ortodoxo, jamais baianizado”. Sempre me pareceu que a literatura no Brasil foi profundamente prejudicada pela interferência católica. Bem entendido: do catolicismo adotado por nossos escritores e intelectuais. Figuras determinantes como Alceu Amoroso Lima e Mario de Andrade quando menos propiciaram um fio de alta tensão entre o que chamas de catolicismo ortodoxo e baianizado, reorientando a vocação poética de muitos de nossos escritores, interferindo na própria configuração cultural do país. Qual a extensão de um prejuízo dessa natureza, em teu entendimento?

 

LI: Não creio que “a literatura no Brasil foi profundamente prejudicada pela interferência católica”. Como todos os países do Ocidente, o Brasil, como civilização, é uma criação do Cristianismo, cuja maior obra é a própria Europa. Foi o Cristianismo que colonizou a América, deixando marcas imperecíveis em sua educação, arquitetura, música, pintura, modo de viver e de morrer etc. Esse impacto civilizatório, destruindo em muitos casos civilizações milenares, como as maia, asteca, inca, modelou o sistema de educação e de produção literária e artística. Cabe destacar que, no século xix, a inteligência brasileira em sua maioria seguiu o caminho do Positivismo, e recebeu influências de Darwin e Spencer, neutralizando poderosamente o selo católico da nossa civilização. Além do mais, essa nova direção literária e artística se disseminou no século xx. O grupo católico (Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Otávio de Faria, Tasso da Silveira e tantos outros) representa essa projeção de espiritualidade, numa literatura de forte conteúdo regionalista, paisagístico e de escassa interrogação existencial. Hoje, com a expansão dos evangélicos e das religiões e seitas africanas, a influência católica, quer a temporal, quer a espiritual, diminuiu sensivelmente, e são raros os escritores brasileiros aos quais se poderia considerar “católicos fervorosos” ou atuantes. Deve ainda ser acentuado que a literatura não é um caminho único, e a comunidade literária se irradia em várias e numerosas famílias espirituais, tanto no plano estético como nos planos político e moral.

 

 

FM: Bem, não podemos esquecer que o projeto modernista de nacionalizar o Brasil tinha forte conotação católica, cujos desdobramentos conduziram ao integralismo. Benjamin Moser, na biografia de Clarice Lispector, por exemplo, ao referir-se a Plínio Salgado, observa que “como muitos integralistas, Salgado era fortemente influenciado pelos escritores católicos que emergiram nos anos 1920, com suas sugestões de nacionalismo místico”. Havia então a presença da revista A Ordem, dirigida por Augusto Frederico Schmidt, em um ambiente onde se confundiam aspectos como a chamada escola introspectiva, nacionalismo místico, integralismo, em uma mesma sala frequentada por Tristão de Athayde, Mário de Andrade, o próprio Schmidt, Plínio Salgado, ambiente que em dado momento chegou a estar sob a coordenação impositiva da Agência Nacional e Lourival Fontes, o super-homem de Getúlio Vargas no comando do Departamento de Imprensa e Propaganda.

 

LI: Não creio que o projeto modernista de nacionalização do Brasil tenha tido “forte conotação católica” como você afirma. Esse projeto se inspirou em elementos indígenas e folclóricos, como o comprova o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e a redescoberta do barroco mineiro por Mario de Andrade, o qual era, aliás, um católico tradicional. E a esses elementos de ancestralidade se acrescentou um tempero de vanguardismo europeu, especialmente o sentimento da velocidade haurido no futurismo de Marinetti. Observe-se que os modernistas de São Paulo ignoravam o Nordeste brasileiro e o viam de longe com olhos turísticos. E de “turistas aprendizes”, para usar aqui uma expressão afortunada de Mario de Andrade. Plínio Salgado, com os romances em que se utiliza de um processo de fragmentação da narrativa, e uso imoderado da elipse e do laconismo, é um seguidor e discípulo de Oswald. Como é um discípulo incômodo, dada a sua condição de criador do Integralismo (o chamado “fascismo caboclo”), a crítica e os estudiosos do Modernismo sempre esconderam essa evidência, omitindo seu nome ou menosprezando-o, com a exceção notável de Wilson Martins que, em sua monumental História da Inteligência Brasileira, chama a atenção para a importância seminal de O Estrangeiro no cenário da nossa ficção. Quanto a Vinicius de Moraes, ele foi uma descoberta de Otávio de Faria, que lhe dedicou parte do livro Dois Poetas (o outro é Augusto Frederico Schmidt). Otávio de Faria, autor de um incômodo e instigante ensaio Machiavel e o Brasil, em que denuncia as nossa misérias políticas, influenciou profundamente Vinicius de Moraes em sua primeira formação marcada pela sua simpatia pelo fascismo. Eram amigos íntimos e ocorreu entre ambos uma relação homossexual que foi apagada quando Vinicius se tornou um dos expoentes da esquerda e do comunismo de salão. Há uma retificação que deve ser feita: Otávio de Faria nunca foi integralista. Ele foi fascista, assim como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade foram comunistas, e Rachel de Queiroz foi comunista e depois trotskista num tempo em que a intelectualidade em sua maior parte não acreditava na Democracia, considerando-a o regime da burguesia conservadora e infensa às grandes reformas políticas sociais e econômicas. E além do mais, o Brasil de 1930 até 1945 foi governado pelo estadista autoritário, centralizador e ditatorial Getúlio Vargas, e na Europa imperavam o nazismo de Hitler, o fascismo de Mussolini, o franquismo do generalíssimo Franco e várias ditaduras sul-americanas dominavam a América.

 

Evidentemente que a inclinação dos escritores católicos ou de famílias tradicionalmente católicas era pelo fascismo e o integralismo. Quando a Geração de 45 emerge, finda a Segunda Grande Guerra, essa Geração será formalista e esteticista, preocupada com a “reconstrução” da poesia e da literatura brasileira. O nacionalismo modernista será substituído por um subjetivismo crescente e por um cosmopolitismo de natureza atualizadora. É o tempo da descoberta de Rilke, T. S. Eliot, Paul Valery, Mallarmé, Ezra Pound, Saint-John Perse, Ungaretti e outros, que substituíram as devoções modernistas. E estas eram Apollinaire, o futurista Marinetti e o Blaise Ceadrars que Oswald de Andrade praticamente depenou em seu Pau- Brasil. Uma coisa singular é que o Modernismo, teoricamente programado para proceder a uma atualização da literatura brasileira, foi um dos movimentos mais desatualizados e desinformados em relação às revoluções estéticas que então se operavam na Europa e nos Estados Unidos. No grande banquete dos ismos do século XX, alimentou-se de migalhas.

 

 

FM: Estamos de acordo que “uma luz impostora ilumina todas as vidas”. Evidente que não significa com isto falsear a realidade de forma canalha, mas antes reconhecê-la como uma mescla de razões e desrazões, anseios e decepções, impulsos e repetições, essências e trivialidades. Como a poesia te descobre? O que sabias de ti quando começaste a escrever?

 

LI: Ao longo de minha trajetória literária, tenho me manifestado talvez exaustivamente sobre a criação poética e a poesia. Para mim, a poesia é uma manifestação da criatividade humana; uma arte – a arte de fazer versos; o uso supremo da linguagem, já que ela é uma magia verbal, um “idioma” específico dentro da linguagem não só a comum como também da linguagem literária da prosa; um testemunho da condição humana; uma celebração do Universo pelo homem. A Poesia resulta de uma vocação individual e intransferível, que se realiza e se aprimora através do trabalho, da pesquisa, da experimentação e da capacidade de renovação diante da tradição. O poeta nasce poeta e se faz e é feito pela cultura que consegue incorporar ao seu ofício. E ele é apenas um elo no grande sistema poético do mundo, um grão de poeira numa tradição que vem do início do mundo e haverá de continuar enquanto este nosso planeta existir.

 

 

 

FM: Quais, aos olhos de um poeta brasileiro, seriam as verdadeiras provas da realidade?

 

LI: A realidade é sempre uma visão pessoal da realidade. Cada um de nós tem a sua, e trabalha com ela ou para ela. É, assim, uma representação, um modo de ver. Entendo que cada poeta, desde os mais exponenciais aos mais modestos e obscuros, projeta em seus poemas uma determinada visão da realidade, do mundo em que respiram, da vida que levam. Para mim, até o sonho e a “alienação poética” são realidades, pois se integram na vida pessoal do poeta e em sua produção. Direi que a visão que tenho do mundo é a minha realidade. É talvez ou decerto uma realidade pessoal, intransferível, mas nela cabem ou devem caber as realidades dos outros. Goethe diz que os homens são seres coletivos. Isto significa que não somos sozinhos nem estamos sós. Somos nós e os outros. Os outros de hoje e os outros de ontem.

 

 

FM: Entendes que o cosmopolitismo da literatura brasileira é uma farsa? Como nos relacionamos com grandes centros canônicos e não com a grandeza natural da cultura em cada país, que outro Brasil tens descoberto à sombra dessa máscara?

 

LI: Partamos do princípio e da evidência de que nós, escritores latino-americanos, somos seres divididos entre o nosso indigenismo e a nossa ibericidade. Como todos os países periféricos que constituem a América Ibérica (à qual o Brasil pertence), temos uma língua e uma etnia europeias (o espanhol, o português) e somos os herdeiros ou usufrutuários de uma cultura transplantada e da cultura autóctone. E a essas culturas se soma a cultura milenar que nos veio da África. À cultura transplantada – literatura, música, arquitetura, educação, culinária, modo de viver e de morrer etc. – conferimos um selo nacional que é a nossa diferença decorrente do nosso indigenismo. O chamado “cosmopolitismo” de parte da literatura brasileira – como de resto a dos outros países como Cuba ou México, Chile ou Argentina – testemunha a nossa ligação transatlântica com a Europa, que, como centro inarredável de tradição e laboratório de experimentação e invenção, atrai a nossa atenção, nos abastece com o seu saber e a sua criatividade e contribui para o nosso aprimoramento. E se funde com o que temos de telúrico e nativo, do nosso chão. Atualmente, podemos vangloriar-nos de que a produção literária e artística na América Ibérica já atingiu um ostensivo grau de autonomia e independência, não pelo que recebemos ou imitamos, mas pelo que criamos e inventamos. A América Latina se tornou a pátria da imaginação e da criatividade, cada vez mais apreciada pelos estudiosos, críticos e leitores de uma Europa que atravessa um período da ostensiva exaustão, após tantos movimentos renovadores como o simbolismo, o surrealismo, o cubismo, o futurismo, o expressionismo e outros. A presença de escritores latino-americanos no fluxo editorial europeu, e ainda a sua presença nos festivais e congressos realizados na Europa, indica que cada vez mais estamos sendo reconhecidos pela nossa diferença e originalidade. Ostentamos uma “irracionalidade” e uma “magicidade” que, pela sua dimensão onírica, primitiva e arcaica, é outra fonte de atração.

 

 

FM: O tempo envelhece o criador ou a criatura?

 

LI: Há poetas e escritores que dão o melhor de si mesmos na juventude ou na maturidade, e decaem ou se tornam repetitivos à medida que envelhecem. Outros há que se inovam e dão o melhor de si mesmos na idade madura e na velhice. É um quadro variado. O importante é que o poeta ou escritor descubra o momento em que deve silenciar, se é que ele deve silenciar em algum instante de sua vida.

 

 

FM: Na pg. 132 do teu livro de ensaios O Ajudante de Mentiroso mencionas a tua insularidade como elemento responsável pelo que chamas de “talvez incômodo ar de estrangeiro no cenário das letras brasileiras”. Restringes a uma inveja crônica a relutância do meio literário em relação à tua obra e até mesmo à tua pessoa. O caso se explica assim mesmo, de maneira tão provinciana?

 

LI: No meu caso pessoal, a minha “insularidade” decorre da circunstância de ser originário de Alagoas, no Nordeste brasileiro – uma região que se caracteriza pela sua beleza oceânica e litorânea, pela miséria clamorosa da maior parte de sua população. Acrescente-se a essas evidências a minha solidão, já que, antes de mim, minha terra natal só produziu dois escritores de projeção nacional, Graciliano Ramos e Jorge de Lima. A esses elementos, acresce o fato de ter seguido, no meu ofício literário e poético, um caminho que atesta irrefutavelmente a minha diferença em relação à minha geração e talvez ao próprio legado cultural do Brasil. Costumo dizer que os escritores são constituídos pelo talento (quando o têm) e pela inveja (sempre). Ao longo do meu trajeto de escritor, muitas mãos, algumas gloriosas, se têm estendido para mim, apoiando-me e abrindo-me caminho. E, de minha parte, tenho procurado proceder da mesma maneira. Minha vida tem sido um estuário de amizades. E também de admiração. Sei admirar.

 

 

 

FM: Outro dilema curioso que encontramos na literatura brasileira diz respeito a este seu aspecto livresco – uma literatura “que só sabe respirar o ar abafado dos livros” –, como tão bem mencionas. O escritor brasileiro, em geral, rejeita a si mesmo como elemento constitutivo da relação – que só se realiza, por sinal, de maneira visceral – entre realidade e literatura. Há o prejuízo imediato da superficialidade e um outro, por efeito de decorrência, de ausência de diálogo com as grandes correntes internacionais. Apontamos aqui as resultantes – teu diagnóstico é perfeito, ao dizer que esta literatura “não pode fazer a leitura do mundo” –, porém, qual é a matriz em que se origina este desvio?

 

LI: Um escritor deve ser livresco e antilivresco. Deve ser guiado pela evidência de que a literatura e a poesia são problemas de cultura e não de mera sensibilidade. Um poeta, a meu ver, deve ser o protagonista mais culto da comunidade literária, devendo conhecer um legado que vem de Homero a Dante, de Virgilio a Camões, de Quevedo a Shakespeare e se estende até os nossos dias. O conhecimento de outras línguas é para mim fundamental, já que a tradição cultural da língua portuguesa era insuficiente para as minhas necessidades de expressão e educação cultural. Já o espectro da língua espanhola é diferente. Você pode ser um grande poeta ou romancista em língua espanhola sem necessitar conhecer outras línguas, já que no passado hispânico há Cervantes e Quevedo, Lope de Vega e Garcilano de la Vega, Fray Luis de Leon e Rubén Dario, Góngora e Antonio Machado, e centenas de outras referências basilares.

 

Por outro lado, o escritor deve respirar o ar da vida, da convivência, o mundo dos outros, pois nele é que se abastece para a sua criação poética e literária. E cada poeta ou prosador faz a sua leitura do mundo – não uma leitura global e total do mundo, que é muito vasto e inapreensível. Lembro o verso magistral de José Martí: “Dos patrias tengo yo: Cuba y la noche”. Nós, poetas, temos sempre a nossa Cuba (o nosso Brasil, o nosso México, o nosso Chile) encravada em nossos corações. E temos a noite: o território das escuridões e constelações, dos sonhos e pesadelos, da interrogação existencial, da indagação cosmológica, da fusão amorosa, do amor e do ódio, de nossa condição humana.

 

 

FM: Em 2002, quando Walter Galvani recebeu o Prêmio Casa das Américas, em entrevista concedida a Fabrício Carpinejar (Rascunho, junho de 2002), o romancista comentou haver sentido restrição da parte da mídia brasileira, que ele supõe tenha sido em relação ao regime cubano, observando que “a divulgação em si não foi à altura do prêmio, que tem prestígio e significado internacional”. Mais recentemente ganhaste o mesmo prêmio. Como há reagido à premiação a imprensa brasileira? Acreditas que este prêmio tenha perdido prestígio internacional?

 

LI:O Brasil é um grande gueto literário e linguístico. A literatura brasileira é completamente desconhecida no Exterior. Alguns poetas e novelistas são editados e apreciados, individualmente, na América Hispânica e em alguns países da Europa, mas esse conhecimento de criações artísticas individuais não chega a se configurar na presença de um país (ainda exótico) e de uma literatura. No plano interno o desconhecimento é ainda mais pungente. As tiragens dos nossos livros literários são quase sempre exíguas. Predomina no mercado o livro estrangeiro, especialmente o best-seller planetário, sinal inequívoco da colonização cultural e da dominação comercial por editores multinacionais. A atividade literária no Brasil é cosmética, decorativa, ornamental. Ser escritor no Brasil é uma coisa muito melancólica.

 

 

FM: És um dos poucos autores brasileiros com trânsito livre nos países hispano-americanos. Transfiro para ti a pergunta que quase sempre me fazem, acerca do indigesto silêncio que marca as relações culturais do Brasil com esses países. Quais os motivos da pouca (ou nenhuma) atenção que nossos intelectuais, sobretudo eles, dão à poesia hispano-americana?

 

LI: Não posso nem devo esconder que a minha condição de “poeta ibero-americano”, decorrente de minha presença em numerosos festivais de poesia e também de sucessivas traduções de minha poesia, em antologias poéticas ou em livros autônomos, muito me alegra. Esse trânsito, iniciado em 1980, quando Carlos Montemayor fez editar no México a antologia La Imaginária Ventana Abierta, e que hoje alcança a Espanha, onde a minha obra poética começou a ser traduzida de maneira intensiva, é realmente um trânsito pessoal. Várias causas podem ser atribuídas ao silêncio do Brasil. Menciono a circunstância de que a língua espanhola só agora, no governo Lula, começou a ser ensinada nas escolas. Até antes da Segunda Grande Guerra, os escritores brasileiros, quando sabiam francês, ensinada nos colégios, se voltavam para França. E quando só conheciam o português, contentavam-se com as traduções estrangeiras e as produções existentes no idioma nativo. O exílio de incontáveis professores e escritores brasileiros nos países da América Hispânica, durante a ditadura, instaurada em 1964, estimulou a curiosidade em torno das literaturas desses países. Mas o caminho da descoberta haverá de ser longo e demorado, e literaturas ricas e vigorosas de uma América que é hoje a pátria da imaginação e da poesia haverão de ser consumidas pelos escritores e leitores brasileiros. Cabe ainda sublinhar a inoperância dos mecanismos culturais destinados a promover a nossa literatura no Exterior, o que estabeleceria uma contrapartida proveitosa com as demais nações hispano-americanas.

 

É notório que a poesia produzida em grandes países do Ocidente está hoje esgotada e necessita de uma transfusão que a América ibero-americana tem condição de oferecer. A repercussão escassa do Prêmio da Casa das Américas a um escritor brasileiro deve ser atribuída à visão provinciana que o Brasil tem do próprio Brasil, e que se irradia por todos os setores. O prestígio dos prêmios da Casa das Américas nos países hispano-americanos e na Espanha e em outros países da Europa é incontestável. O insulamento cultural do Brasil é uma realidade incontestável. E precisamos de pontes, neste mundo cercado de outros lados.

 

 

 

 

*Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige o Projeto Editorial Banda Hispânica, dentro do qual circula a revista Agulha Hispânica (www.jornaldepoesia.jor.br/BHAHentrada.htm) e colabora com o DC Ilustrado. Contato: bandahispanica@gmail.com 

 

Página publicada em julho de 2012.

Lêdo Ivo – entrevista a Floriano Martins sobre poesia e literatura – Ensaios, resenhas...

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